Cala a boca, Bárbara!

Chico, por meio de Calabar, procurava exaltar o capitão do exército (hoje Coronel) Carlos Lamarca, acusado de traição pela “Redentora” .

Publicada em 03 de June de 2013 às 21:58:00

O gênio de Chico Buarque de Holanda, em disco de 1973, apresenta a trilha sonora da peça teatral “Calabar: o elogio da traição”. Eu tenho esse disco. Não empresto a ninguém. Afinal, como diz o brocardo: “quem empresta nem para si presta”. Além disso, tenho amigos que adoram ampliar seus acervos com discos alheios – e DVDs também.

Voltando à peça, “Calabar: o elogio da traição” retrata a figura emblemática de Domingos Calabar, acusado de traição pela coroa portuguesa por ter auxiliado os holandeses na conquista de alguns Estados do Nordeste brasileiro.

A peça foi censurada. Chico, por meio de Calabar, procurava exaltar o capitão do exército (hoje Coronel) Carlos Lamarca, acusado de traição pela “Redentora” (nome dado pelos golpitas de 1964 ao movimento que tomou de assalto o poder soberano do povo). A referência a Calabar, na verdade, era uma referência ao próprio Lamarca.

A perspicácia de Chico é descortinada logo na música “Cala a boca, Bárbara!”. Calabar, preso pelos portugueses, foi morto e teve seu corpo esquartejado. Posteriormente, a Coroa portuguesa proibiu até que seu nome fosse pronunciado. Por causa desse fato, o nome de Calabar nunca é pronunciado na música. Mas Chico esconde no título da música – e no refrão - o nome Calabar. Perceba o leitor: CALA a boca, BARbara. Se juntarmos as sílabas maiúsculas, teremos o nome Calabar. Bárbara era viúva de Calabar e, na música, uma metáfora da pátria.

Na faixa “Ana de Amsterdam”, Chico retrata uma lésbica que vem para o Brasil junto com os holandeses e escandaliza as famílias da então colônia lusitana. A música foi totalmente censurada. Tanto que, no disco, só se ouve a melodia, sem a letra respectiva.

Há cortes parciais em duas faixas do disco. Na canção “Bárbara”, há um diálogo entre Ana (Amsterdam) e Bárbara (viúva de Calabar), em que Ana convida Bárbara para se afundarem “no poço escuro de nós duas”. No disco, a parte “nós duas” é cortada e se percebe na execução da música a mão da censura. Seria uma indicação de que ambas seriam lésbicas.

Por sua vez, na faixa “Fado Tropical”, quando é dito “todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo, além de sífilis, claro”, o vocábulo sífilis é cortado. A execução da música foi totalmente proibida, após a Revolução dos Cravos em Portugal, que depôs uma ditadura que se arrastava há décadas. Essa Revolução devolveu ao povo o poder de se autodeterminar. Nesse momento, a música ficou subversiva. Afinal, “esta terra ainda vai cumprir seu ideal de se transformar num imenso Portugal”? Portugal democrático?

Por fim, a canção “Vence na vida quem diz sim” foi também completamente censurada e, a exemplo de “Ana de Amsterdam”, sua execução é totalmente orquestrada.

Esse disco completa, este ano, 40 anos. Como dito acima, tenho o disco, mas não empresto a ninguém.

Theodorico Gomes Portela Neto é procurador da Fazenda Nacional, Professor e Músico. Escreve semanalmente.