Detetive Sardinha

Um Pero Vaz de Caminha da deduração cabareana, por: Altair Santos (Tatá).

Publicada em 09 de April de 2016 às 09:52:00

Da série: Cultura de Cabaré

Lá na entrada do Bairro do Triângulo, a poucos metros de chegar aos trilhos da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, quem olhasse à esquerda em plano de média distância, enxergaria o Bar do Figueiredo. Durante o dia era um estabelecimento discreto com pouco movimento, silencioso, quase com um convento ou mosteiro, uma casa aparentemente mórbida de duas largas portas frontais sem pintura, cuja estética desinteressante ocultava o vapor e rebuliço que ali rolava, a partir da aparição das primeiras estrelas, tanto no céu quanto no palco daquele puteiro, na boquinha da noite.

Sabe-se que alguns rapazes do histórico Bairro do Triângulo e do Ramal São Domingos, Baixa de União, Mocambo, Areal e arrabaldes, debutaram nas iniciais e desregradas práticas e lumes da vida noturna, ao conforto dos colos e braços e sob os tratos profissionais das experimentadas e eficientes damas dali. Certo dia por lá apareceu um cidadão de nome Antonio Sardinha um cara “mega estranho evolution” o qual diziam ser detetive de profissão e, segundo alguns desconfiados do lugar, tinha a missão secreta de xeretar e denunciar – não se sabe pra quem - comportamentos duvidosos, extravagantes, ou suspeitos em locais estrategicamente escolhidos.

Após três meses e meio de sinistra e incômoda presença no lugar, o viram em certo entardecer, concentrado e reflexivo num canto lentamente a degustar um copo de refresco de groselha, enquanto fazia cautelosas anotações num papel de maço de cigarros da marcam continental, tipo sem filtro. Como se fosse um auditor, a cada registro, ele olhava detalhadamente pro ambiente e voltava a anotar. Em certo instante enquanto abaixou-se pra amarrar o cadarço do seu “passo doble” impecavelmente engraxado, um dos presentes corajosamente escondeu o manuscrito enfiando-o dentro da calça.

Ao dar falta do papel, Sardinha agiu de imediato e, apontando pro local, perguntou aos presentes com voz empostada e tom inquisidor: senhores alguém viu ou pegou um papel com anotações, que estava bem aqui? Todos responderam em coro uníssono, nãããooo! Será que o vento levou, complementaram a resposta em pergunta ilustrativa e temática ao épico filme naquele mês em cartaz no Cine Teatro Resky. Era a primeira vez que ouviam a voz daquela perturbadora alma andante que, sem o papel secreto, calmamente e sisudo retirou-se de lugar lentamente, mas interrompia a caminhada a cada cinco ou seis passos e olhava pra trás, como a fitar e marcar os fregueses, agora suspeitos de surrupio de documento.

Momentos depois, seguros de que o tal detetive não mais estava ali, cuidadosamente abriram o papel e, em leitura coletiva, deram de cara com o seguinte relato ou breve dossiê feito a punho, pelo esquisito Sardinha: “... o recinto tem um bar na entrada, o dono é um velhusco, educado e calmo, de cabelos brancos. Aqui tem duas mesas de sinuca de oito bolas cada uma, bem no meio duma varanda lateral onde alguns homens, o dia todo, feito cornos abandonados e sem ter o que fazer, passam o dia bebendo e apostando dinheiro nas práticas contraventoras do bozó e baralho. Eles fumam feito caiporas.  Contíguo ao bar, pelos fundos, tem uns oito ou dez aposentos de madeira onde dormem mulheres e homens e até altas horas ali acontece um entra e sai desenfreado.

Ao amanhecer todos aparecem na viela dos fundos com cara de ressaca e mal dormidos e rapidamente somem na lapa do mundo, voltando somente após o almoço para o vicio corriqueiro ou quando a noite cai, pra fazerem a costumeira sacanagem noturna Resultado: isso aqui, pelo que deduzo, só pode ser um puteiro!” Era este o manuscrito a ser endereçado sabe-se lá pra quem por aquele agente da passiva com DNA de dedo duro, um Pero Vaz de Caminha em missiva fofoqueira, a denunciar os secretos louros e    ápices do cabaré.

A partir de então, o fofoqueiro textual passou a ser odiado e também xeretado pelos habituês do Bar do Figueiredo. Mesmo assim, “só de birra”, todo santo dia e todo dia santo, Sardinha, o indesejado, o cão em figura de gente, marcava ponto no bar escondendo seu rosto numa barbicha sempre aparada e, feito um super-herói, mantendo o sigilo de sua real identidade detrás de um inseparável e aloprado par de óculos escuros, que usava mesmo durante a noite. Sua presença silenciosa e hostil minava a paz dos clientes cotidianos que, enervados e receosos de estarem sendo observados, silenciavam ou iam embora mais cedo. O detetive com sobrenome de peixe era um enxadrista dos bons, naquela guerra fria.

Mas como pau que bate em Chico também bate em Francisco, os incomodados do lugar houveram de, segundo suas “expertizes” vasculhar amiúde, o silencioso e até então impenetrável mundo do sombrio detetive. Montaram estratégia e após dois ou três dias só “mancuricando” (espionando, observando) descobriram que, entre idas e vindas, debaixo dos panos e coisa e tal, enfronhado na sua estranheza segredista, veio a público que o Sardinha, além de delator e esmerado na caguetagem, curtia uma ardente e escondida transa com a Isabel, morena de quatro costados e noventa e tantos quilos. Era ela a razão do silêncio e certa apatia do Sardinha, afinal a falastrona e corpulenta morenona, boa de briga e exímia no manuseio da navalha ou do canivete com cabo de osso, era escandalosa  em alta escala e, constantemente, entre quadros paredes, o ameaçava em caso dele vir a empreender debandada e ela perder o conforto dos polpudos e constantes pró-labores com que ele abrandava a sua fúria e garantia caprichados xamegos.

Mas Isabel tinha o seu calcanhar de Aquiles. Em que pese ela ceder aos predicativos financeiros e estruturais que emanavam das posses e do mau caratismo do desconhecido Detetive Sardinha, o seu coração era arriado de quatro pelo Manel Machado, um galego forte, alto e mal educado, cozinheiro de uma barco de pesca que mês sim mês não, por aqui aportava vindo da região de Nova Olinda do Norte, Borba e Manicoré, no Amazonas. Manel era ciumento da Isabel em doses cavalares, a ponto de brigar pela esparramada dama em qualquer lugar. Certa vez, movido pelos escaldantes vapores do ciúme, invadiu o quarto dela e, aos murros derrubou tudo, inclusive as paredes. Depois, em sem-vergonhice prelúdica e na paz dos afagos e enxerimentos posteriores, quedou aos apelos pela reparação ao estrago causado e mandou reformar e mobiliar o aposento da Isabel.

Dez dias depois, a força tarefa desgostosa e medrosa do detetive, soube que às 19 horas dum sábado calorento acabava de atracar no porto do Cai N´água o barco salvador, a arca da esperança vindo das fartas águas do amazonas trazendo a bordo,  além de peixes,  o bravio navegante, homem corajoso contra as procelas oceânicas e que daria fim ao império do medo, instituído pelo Sardinha, o detetive come-quieto. De pronto todos desceram o barranco e foram ter com o Manel Machado, antes mesmo do marinheiro por os pés em terra firme.

No convés do barco verbalizaram o fuxico com minúcias aos ouvidos atentos e ao corpo gradualmente e febrilmente enfurecido do ultrajado cozinheiro das águas sobre a sua amada Isabel e a quantas andava o seu comportamento, suas estripulias e com quem estava a fazer poucas e boas, dentre outras traquinagens, inclusive de cunho sexual. E mais, disseram até saber que, naquele momento, Sardinha o silencioso Don Juan, estava lá ao deleite e arroubos, em verdadeiro frenesi amoroso com a “afoguetada” e insaciável Isabel.

Decidido apenas disse, ou melhor, gritou, aos informantes: sigam-me! Daí em diante talvez, nem mesmo deus pra abandar o apunhalado coração do cozinheiro chifrudo ou destituí-lo da sua irreversível sede vingança. Após um salto olímpico e poucos passos já estava no topo do barranco, correu em disparada rumo ao puteiro e lá chegando cego e transtornado colidiu fortemente com um cara franzino que corria em sentido contrário e que veio a ter um chilique, um piripaque, como saldo do forte impacto. Era o Sardinha em apressada fuga, pois o boato chegara antes. O touro indomável, ou melhor o Manel Machado, esvaindo-se em ira, ao tempero da cornagem tatuada em seu ego e honra de cabra macho, nem percebeu que atropelara seu sócio que, acudido pelo passamento foi jogado num táxi e levado ao Hospital São José.

Manel sem pestanejar incorporou Bruce Lee, aquele afamado kung fu do filme Operação Dragão e, num só golpe pôs abaixo a porta do quarto de Isabel e parte dos pertences. Lá dentro, como não havia mais ninguém, afinal a descarada da Isabel não pagaria pra ver, o corno transpassado em ódio a tudo destruiu.

Três dias depois, sem notícia qualquer do paradeiro da Isabel, o cozinheiro soube pelos informantes que o detetive estava hospitalizado para alguns reparos psicológicos, físicos e cuidados estéticos pois aquele encontrão lhe provocou sérias avarias. Numa tarde de chuva fina, Manel Machado armou-se de uma lambedeira com sutis 16 polegadas, caprichosamente amolada e dirigiu-se a nosocômio para uma visita de caridade e, conseqüentemente, um procedimento cirúrgico que, segundo , seu intento, retiraria os fatos do Sardinha e lançaria ao urubus, lá detrás do necrotério.

Na porta do hospital o corno ferido de morte, fora atendido por duas bondosas freiras que relataram naquela manhã o detetive haver feito fuga deixando o seguinte bilhete sem endereçamento: “com medo de morrer vou embora, pra nunca mais voltar nessa terra de corno brabo!”

Manel Machado leu o bilhete, levantou a cabeça e lançou ao nada, um olhar perdido. Antes de sair, puxou a avantajada faca da cinta pôs em cima da mesa e disse para as freiras, é de presente pra vocês! Mais tarde fora visto cheio da cachaça no Bar do Figueiredo.