Feminismo e “ideologia de gênero” como tarefas do pensamento para a transformação do mundo. (Dito de modo breve, a UNIR não é Samuel Milet)

Arneide Bandeira Cemin[i]

Publicada em 25 de October de 2016 às 13:16:00

 

                Disse em Mesa Redonda sobre Questões de Gênero na última Semana de Ciências Sociais da UNIR, que quase poderíamos parodiar Marx e Engels na célebre e poética frase inicial do “Manifesto Comunista”,  para dizer que um fantasma ronda o país, com o nome de “Ideologia de gênero”. Eu diria que o verdadeiro nome do fantasma é “Feminismo”. Pois o que realmente incomoda é o questionamento do estabelecido. A interdição que proíbe a mulher de pensar o mundo e agir politicamente para transformá-lo. A fala do professor Samuel Milet, é exemplo de despreparo para condução de dialogo em situação de tensão moral, conforme disse a professora Débora Diniz, pessoa que tem um trabalho de muita qualidade e importância no campo da Bioética, da Antropologia e dos Direitos Humanos. Ouvi o áudio da fala de Milet há pouco e eis que ela apresenta em imagens trágico-cômicas a repetição da sentença que levou a morte em guilhotina a Olympe de Gouges, na Revolução Francesa de 1789: “ter ousado ir além {dos estritos limites sociais impostos ao} do seu sexo”.

                Digo que o nome do fantasma é Feminismo porque toda questão relacional é política, no sentido de Hegel, acerca da dialética do senhor e do escravo. O Feminismo é movimento político que procura pensar a condição humana e nela o lugar que as instituições sociais elaboram para os sujeitos sexuados ao instituí-los enquanto sujeitos gendrados, ou seja, sujeitos em referência a estruturas simbólicas que tem por função interpelá-los, de modo a constituir suas subjetividades em identificação ao padrão social de referência. 

O ordenamento dos gêneros é o ponto mais sensível de todas as sociedades, pois ela toca o fundamento antropológico da existencialidade humana, enquanto ser sensível, sexuado,  sensciente e histórico, portanto transformável. Entretanto, considerando a estrutura patriarcal de nossa sociedade, e para falar também da outra ponta do espectro político, no caso, o liberal inteligente Stuart Mill, o escândalo, digo, é a possibilidade de existência autônoma da “escrava moderna”. Ocorre que a mulher, como mostrou Levi-Strauss, é o bem mais precioso de qualquer sociedade: por ser insubstituível na função de reprodução (a sociedade ainda precisa do útero), como força de trabalho (também fundamental em qualquer sociedade) e em seu potencial erótico, em sentido amplo.

Obscurecer as relações de poder que instituem a relação entre os gêneros é parte do que está implicado na “ideologia de gênero”. Como toda ideologia, ela mostra e esconde. No caso, as profundas assimetrias que fundamentam a nossa sociedade e a nossa cultura. A assimetria étnica, de gênero e de classe e as assimetrias regionais, geopolíticas. A chamada questão de gênero é complexa porque envolve todas as questões humanas e sociais, desde a constituição de nossas subjetividades lida em matriz psicanalítica, até as instituições.

Para estudar as formas de poder que estruturam as relações sociais de gênero, necessitamos de dispositivos institucionais também complexos e consolidados por informação matemática, científica, artística, filosófica, entre outros saberes. Penso que é preciso criar estruturas institucionais capazes de explicitar a fundamental relevância das questões implicadas em nossa humanização. Há tempos venho dizendo às colegas de trabalho que necessitamos de algo como um “Instituto de Estudos de Gênero e Diversidade Cultural”, a exemplo do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina, que realiza a cada dois anos, o Seminário “Fazendo Gênero”.

Penso um instituto voltado para pesquisa-extensão e que tenha como base as pesquisas realizadas na UNIR, sobre violência de gênero, sexualidade, desigualdade, feminismo...; seriam articuladas a experiência de outras instituições, a exemplo da ANIS (Instituto feminista de Bioética e Gênero), e dos projetos Promotoras Legais Populares e O Direito Achado na Rua, entre outros. Algo como um Instituto de Estudos de Gênero e Diversidade Cultural poderia dar a questão o status que ela requer para deixar de ser vista como algo marginal nas instituições acadêmicas onde quem pesquisa as relações de poder que estruturam e transversalizam as nossas relações sociais de gênero, são vistos\as no mínimo, como exóticos\as. Mas temos aumentado em número, gênero e qualidade, o que significa que todo esse trabalho social não é em vão.

Entretanto, entendo que para pensarmos um instituto qualquer, em matriz democrática, precisamos pensar um modelo que se oriente pelo princípio de trocas cooperativas entre os centros e grupos de pesquisa e ensino, e não no modelo do individualismo atomístico e acumulativo que informa a lógica das instituições estatais de fomento e controle das atividades educacionais e científicas. O saber é um bem coletivo universal e partilhá-lo poderia ser o princípio de orientação desse tipo instituição.

Acredito que o ofício de ensinar requer a atividade do pensamento. Mas o problema do nosso tempo (que coincide com a ameaça totalitária e com a exacerbação da violência, Arendt) é realizar o trabalho do pensamento capaz de inquirir os fundamentos de qualquer tipo de poder que aniquile a criatividade, a inteligência, a beleza, a sensibilidade compreensiva, a diversidade e, conseqüentemente, a liberdade respeitosa do limite que a presença do outro pode requerer.  Penso que quanto ao caso Samuel Milet, é preciso ir além dos atos punitivos cabíveis, para dar uma resposta com a qualidade que imprimimos ao ofício de ensinar, que segundo o meu entendimento, e de muitos\as que trabalham em educação, deve ser fundamentado no trabalho de pensar e realizar o mundo no qual queremos viver.

Porto Velho, 23 de outubro de 2016.

            

 


[i] Arneide Bandeira Cemin é doutora em Antropologia (USP), com pós doutorado em Bioética pela UNB, professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Mestrado e Doutorado de Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente; pesquisa imaginário social e relações sociais de gênero, e busca discutir Bioética Intercultural e Feminista