PORTO VELHO, O PETEORO E A MÁQUINA MORAL

“Ele matou a cidade, deixou o cadáver a céu aberto, lançou flores e dissimulou o luto”

Publicada em 27/03/2013 às 09:38:00

Antônio Serpa do Amaral Filho

Quando os habitantes de Porto Velho decidiram enviar o Agrimensor a terras distantes, um ar de satisfação e entusiasmo tomou conta do escolhido. Ele sabia que era oportunidade ímpar de conhecer outras culturas e outros povos. Depois das costumeiras despedidas, arrumou as malas e os equipamentos e, com o sorriso no pensamento, partiu para seu destino: Pasárgada.

Pasárgada era uma cidade construída às margens do pomposo Rio das Lágrimas. Lá, o Agrimensor deveria catalogar informações sobre as práticas utilizadas para o desenvolvimento e urbanização da cidade, bem como sobre os hábitos da população estrangeira. Deveria registrar tudo para entregar ao conselho administrativo de sua cidade. Para tanto, trouxe consigo o relatório feito por seu antecessor há uns dez anos.

No desembarque na rodoviária, assustou-se com a situação do local. Sujeira, pessoas e malas misturadas em um bálsamo de fedentina e desrespeito. Não acreditou que um ambiente daquele pudesse ser o cartão de boas-vindas de uma cidade. Em ato contínuo, pegou o relatório anterior e o leu: “Rodoviária, 13 de março de 2003: essa horrenda rodoviária é o produto maléfico de uma administração incompetente e corrupta. Local sem as mínimas condições de receber seres humanos...”. Não demorou e parou a leitura. “As coisas não mudaram muito nesses anos”, pensou.

Dirigiu-se ao abrigo de ônibus para ir a um hotel. Não encontrou nenhuma estação. Aliás, encontrou a céu aberto um banquinho feito de quatro ripas e do lado uma placa retorcida sem indicação de rotas e horários dos ônibus. Depois de mais de hora, um velho ônibus parou. Ao entrar, uma sensação de mal-estar devido à situação horrenda do coletivo. Conseguiu, com dificuldades, uma poltrona para sentar. Abriu o texto de seu antecessor: “Transporte Público, 14 de março de 2003: precário, com a frota de veículos totalmente sucateada. O preço da tarifa é um dos mais altos da República”.

Ao perceber que o veículo iria tombar, o Agrimensor olhou para o cobrador e perguntou por que o ônibus balançava tanto. O cidadão lhe respondeu: “É a buraqueira. Essa cidade é um mar de buracos. Por todos os lados crateras e mais crateras. Parece que um meteoro atingiu a cidade. Na verdade, foi um peteoro que nos destruiu. Uma estrela vermelha caiu do céu e destruiu a cidade”. O Agrimensor não entendeu a metáfora, mas registrou para uma posterior consulta sobre esse fenômeno luminoso que aconteceu em Pasárgada e trouxe apenas escuridão...

Por coincidência, quando o ônibus parou em um engarrafamento, a chuva começou e o ônibus se tornou uma panela de pressão. O calor só não era maior do que a indignação de duas senhoras ao lado. “Como pode um cidadão gastar dezenas de milhões com viadutos que simplesmente nunca são concluídos e nós ficamos aqui nesse calor miserável. E ainda no risco de morrermos afogadas”. O olhar do Agrimensor se voltou para fora do ônibus e viu que água da chuva tinha mais de metro. Constatou que toda aquela região estava alagada. Tirou fotos e anotou tudo.

Depois da aventura, o descanso era merecido. Mas o Agrimensor não possuía muito tempo. Em menos de uma hora, já reiniciou o seu percurso. E, dessa vez, foi ao museu político da cidade, para fazer anotações sobre os políticos locais e suas grandes obras. A galeria era imensa. Tantas figuras ilustres que o Agrimensor se espantou com o rol. Cada um deles era lembrado com muitas honrarias e estrelas. Bucéfalo: poeta, engenheiro, prefeito, símbolo da intelectualidade. Hitler, com seu bigode de ouro, representava a arquitetura moderna da cidade. E o rol de pessoas ilustres não terminava. O Agrimensor chegou a pensar que aquele Povo, pelos seus heróis, deveria ter uma história espetacular.

De repente, um ancião perguntou em tom afirmativo ao Agrimensor: “O senhor não é daqui? Não é não! O senhor não conhece a história desse pessoal que está aí homenageado?”. O viajante respondeu negativamente e convidou o idoso para explicar qual seria a história verdadeira. “Quando elegeram Bucéfalo, todos estranharam o rabo dele. Depois de dezenas de perícias, descobriram que ele era apenas um cavalo. Fomos enganados pela propaganda. Quanto a Hitler, não preciso nem falar. Ele matou a cidade, deixou o cadáver a céu aberto, lançou flores e dissimulou o luto. Em agradecimento a seus atos, ganhou nome de rua e é símbolo das grandes obras da cidade: metrô, viadutos, museus, teatros. Além desses dois, houve os que ficaram milionários com esquemas de corrupção e, mesmo filmados com propina e tudo mais, foram reeleitos para cargos públicos e todo ano são homenageados pela cidade como referência de honestidade”. Depois, o idoso sorriu com ironia.

O Agrimensor deu boa-tarde e se afastou do idoso que não parava de ri. Saiu do museu com a impressão de que aquela cidade estava em maus lençóis. Abriu novamente o relatório anterior e observou: “Política, 18 de março de 2003: a reiterada reeleição para cargos públicos de pessoas sem a menor carga ética revela o eloqüente amor pela servidão e pela ‘esculhambação’ dos pasargadianos. A grande máquina moral desse Povo é o respeito pelos corruptos e desonestos”. O Agrimensor ficou silente. Por morar em uma cidade gerida por pessoas honestas, não assimilava como crível aquele cenário.

Cansado, resolveu ir para o seu hotel. Caminhou pela principal rua da cidade e se espantou com a quantidade de lixo jogado pelos cidadãos: plásticos, garrafas de vidro, latas e tudo que é dejeto. E viu o córrego de esgoto que passava ao lado da suja calçada. Por curiosidade, reabriu o relatório do seu conterrâneo: “Limpeza Urbana, 20 de março de 2003: na principal avenida, no centro da cidade, esgoto transita ao lado das pessoas que, irresponsavelmente, jogam muito lixo ao solo todos os dias”. O Agrimensor resolveu voltar para Porto Velho.

Na audiência pública para apresentar o seu relatório, o Agrimensor foi enfático: “Caros patrícios, creio que meu relatório é desnecessário. As palavras de meu antecessor são suficientes para descrever as enfermidades que fizeram e fazem Pasárgada sucumbir lentamente. Porto Velho não pode ser tornar a triste Pasárgada do Rio Madeira. Devemos lutar todos os dias para melhorar esta Capital que tanto nos orgulha e nos faz feliz. Sejamos vigilantes contra todas as formas de fascismo”.

Respeitem Porto Velho!!!