Justiça se aproxima de povos tradicionais para ouvir crianças em casos de violência

Segundo a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, a ideia era debater a implementação dos normativos no contexto das comunidades e povos tradicionais

Lenir Camimura Agência CNJ de Notícias/Foto: Luiz Silveira/CNJ
Publicada em 20 de abril de 2022 às 11:06
Justiça se aproxima de povos tradicionais para ouvir crianças em casos de violência

Um conjunto de diretrizes foi reunido no “Manual Prático de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais”, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para orientar tribunais, magistrados e magistradas a lidarem com essa sensível questão. O objetivo é adaptar as normas da escuta protegida, de forma a garantir a proteção de vítimas e testemunhas de violência de origem quilombola, indígena, cigana ou outros povos que habitam o território brasileiro.

Construídas a partir das informações levantadas pelo diagnóstico antropológico realizado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), as 14 orientações tratam desde a identificação do povo à estruturação do Judiciário para implementar a escuta protegida. As discussões partiram da Resolução CNJ n. 299/2019, que estabelece a implementação da escuta protegida para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, conforme disposto na Lei 13.431/2017.

Segundo a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, a ideia era debater a implementação dos normativos no contexto das comunidades e povos tradicionais. “Havia uma dificuldade em saber o que acontecia na prática. A partir de um diagnóstico nas regiões com maior incidência dos povos tradicionais, identificamos e propusemos um protocolo para nortear essa questão”, explica. A magistrada destaca, contudo, que alguns desafios vão além da estrutura e logística. “Nada é simples, porque são regiões afastadas e com culturas próprias. É preciso customizar o atendimento e sabemos das dificuldades de ter pessoas capacitadas para realizar o depoimento especial. Mas a preocupação do CNJ e de todo o Judiciário é de dar visibilidade a esses povos e garantir seus direitos.”

O diagnóstico é resultado do projeto-piloto realizado em 2021 com a participação dos Tribunais de Justiça da Bahia, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima e se concentrou nos povos indígenas, ciganos, quilombolas e povos de terreiro. Durante sete meses, a consultora do Pnud e antropóloga Luciana Ouriques esteve em contato com as comarcas definidas pelos tribunais para participar do projeto. “Nossa intenção era, a princípio, verificar em que situação o depoimento especial de crianças estava estruturado e como lidavam com as especificidades dos povos tradicionais.”

De acordo com a antropóloga, em muitas regiões há barreiras não apenas culturais, mas também logísticas. Algumas comarcas não contam com o apoio da rede de proteção e do Sistema de Justiça para a tomada do depoimento especial. “Uma das principais questões foi a mobilização da rede de apoio para a implantação do projeto-piloto e, juntos, aderir à reflexão sobre possibilidades e potenciais para a construção de pontes de diálogo com os representantes culturais e líderes de comunidades.”

O preparo das equipes técnicas – entrevistadores forenses e intérpretes – também não se limita à norma. Pelo contrário, é preciso entender a cultura da criança que será ouvida, tanto para formular perguntas que façam sentido para ela dentro de sua cosmovisão, quanto na tradução da língua, que deve ter a influência da cultura para que haja uma comunicação efetiva. “O intérprete, nesses casos, é um mediador cultural. As perguntas devem ser adaptadas para as estruturações simbólicas da língua, para que façam sentido para a criança”, ressaltou Luciana Ouriques.

A especialista reforçou ainda que o diálogo do CNJ com as comarcas construiu debates para romper as dificuldades interculturais e interinstitucionais e das várias instâncias do Sistema de Justiça, incluindo a rede de apoio, formada por entidades como igrejas, centros comunitários e associações, além da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Foi muito importante que o Judiciário tenha buscado estabelecer o contato com os líderes dessas comunidades, abrindo-se para o diálogo e para a participação dos povos. Não tem como a criança ser ouvida se seu povo não o é.”

Quilombolas, ciganos e povos de terreiro

Na Bahia, três comarcas participaram do projeto-piloto: Santo Amaro, Eunápolis e Cachoeira. Na região, a maior incidência é de povos tradicionais quilombolas, ciganos e nações de terreiro.

Segundo o coordenador do projeto no Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), o juiz da 1º Vara dos Crimes praticados contra crianças e adolescentes da comarca de Salvador, Arnaldo José Lemos de Souza, é preciso entender a cultura desses povos para que não seja provocada a chamada “violência secundária”, nem a institucional, “por não darmos tratamento adequado em relação às questões culturais”.

O magistrado afirmou também que é fundamental que as comunidades tenham conhecimento da preocupação do Judiciário em respeitar sua cultura. Esse diálogo permite a abertura para a atuação de todo o Sistema de Justiça e da proteção da infância. Para ele, o Manual é um instrumento importante, pois traz à luz formas de dar atenção a essas crianças. “Para ouvi-las é preciso saber de onde elas vêm, para saber como lidar com suas peculiaridades étnicas, sem que se sintam culpadas ou envergonhadas. É uma forma de demonstrar empatia e de que elas estão seguras.”

Além das dificuldades culturais, as comarcas baianas também não conseguiram identificar os processos referentes às vítimas de comunidades tradicionais. E que não há um campo para identificação da etnia no cadastro dos processos judiciais. O CNJ já está trabalhando em uma solução na Plataforma Digital do Poder Judiciário, que deve trazer a identificação de grupos minoritários.

Em Santo Amaro, onde há a predominância de quilombolas, foi feita uma parceria com a prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência Social, para identificá-los. O juiz Gustavo Nunes, que respondia pela comarca de Santo Amaro à época do projeto, contou que, na delegacia e na prefeitura, não haviam profissionais especializados para lidar com as comunidades étnicas.

De acordo com ele, o projeto-piloto despertou para as necessidades gerais da implantação do depoimento especial, como a sala específica para as oitivas, a capacitação dos servidores e o conhecimento do juiz em relação a esses povos. Nunes ressaltou que o projeto humaniza o Judiciário. “A iniciativa do CNJ foi muito importante, pois o depoimento especial já é algo complicado e complexo. A criança já está cercada de traumas e problemas. Quando se acrescentam costumes específicos, elas são ainda menos compreendidas. Se for feito por pessoas que não têm essa sensibilidade, o resultado não é efetivo.”

Em Eunápolis, extremo sul da Bahia, o juiz Otaviano Andrade de Souza Sobrinho contou com a parceria da Igreja Católica, cujo bispo diocesano se dedica a cuidar dos povos ciganos da região. “Para ter acesso à comunidade, somente com a intermediação de Dom José Edson Santana de Oliveira, o bispo local.” Os ciganos da região mudaram sua característica nômade para se estabelecer na cidade. Contudo, visando proteger uns aos outros e conservar sua identidade, valores culturais e dialetos, constroem suas casas numa mesma localidade.

Os ciganos desconfiam do Judiciário e não compreendem a diferença entre as instituições do Sistema de Justiça. “Houve um desentendimento entre os ciganos e a polícia durante o período do projeto e isso criou uma tensão. Isso se refletiu no trabalho de aproximação que estávamos tentando estabelecer”, explicou o magistrado. “A pandemia dificultou ainda mais a interação, mas o trabalho do CNJ despertou a vontade de aproximação e estamos agendando reuniões. Pretendemos explicar às lideranças a função do Judiciário e aprender o que pensam a nosso respeito. Dessa forma, esperamos ter mais acesso e trocar conhecimentos que nos permitam ajudar a comunidade.”

Em Cachoeira, cidade histórica com 30 mil habitantes, está a maior concentração de terreiros de candomblé do país. Essas comunidades também têm uma cultura própria, influenciada pelas raízes religiosas. Nesse contexto, o projeto reuniu todas as representações das Nações de Terreiro para explicar como o depoimento especial deve funcionar. “A ideia é que eles mesmos sejam os multiplicadores desse conhecimento”, explicou José Francisco Oliveira de Almeida, juiz titular de Vara com competência de Crime, Júri, Execuções Penais, Infância e Juventude da comarca. A Lei do Depoimento Especial evita a revitimização por meio da entrevista forense, como ressaltou o juiz. “O projeto acrescenta algo familiar à oitiva, como alguém da comunidade, para que a criança se sinta confortável.”

Para realizar a reunião com as lideranças de terreiro, o juiz contou com a participação de um advogado local, que integra a comunidade. Antes disso, não havia resposta aos convites enviados pelo Judiciário. “Há uma hierarquia, dialetos e representações nas vestimentas. Questões culturais que precisam ser respeitadas e levadas em consideração na aproximação com os povos.”

Depois do encontro, foi criado um grupo em um aplicativo de mensagens. “O que combinamos é que, havendo alguma intercorrência, eles nos avisam e enviamos um representante da Coordenadoria da Infância para verificar a questão no local.” Além disso, o juiz não descarta a possibilidade de realizar as oitivas dentro das comunidades, em vez de levar a criança para o fórum. “A lei se volta para o interesse da criança. Se o maior conforto para ela for ser ouvido no local, faremos assim.”

Para o juiz José Francisco, quando o Poder Judiciário se especializa em algum tema, pode oferecer um retorno positivo para a sociedade. “É o que estamos vendo com a realização deste trabalho, que dá os primeiros passos com o Manual. O ganho social é considerável. Os outros colegas do Brasil terão uma ferramenta para lidar não apenas com essas minorias, mas também em outras situações similares.”

Depoimento especial

O depoimento especial constitui um dos atendimentos prestados pelo sistema de garantia de direito de crianças e adolescentes vítimas de violência, que prima pela não revitimização. Para tanto, se faz necessária a atuação sistêmica e coordenada entre as instituições que integram o sistema de garantia de direitos — Judiciário, segurança e rede de proteção. Nas comunidades tradicionais, o fluxo dos atendimentos prestados pelo sistema de garantia de direitos precisa adquirir contornos interculturais de modo a contemplar as especificidades linguísticas e socioculturais.

Resolução CNJ n. 299/2019, a Lei n. 13.431/2017 e o Decreto n. 9.603/2018 são os normativos que tratam da escuta protegida, reconhecem a necessidade de se garantir condições especiais para o depoimento especial das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência oriundas de povos e comunidades tradicionais de modo a evitar a revitimização.

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