A Lei Antes das Leis: Como os Dez Mandamentos Moldaram a Civilização Jurídica
Um olhar opinativo sobre a influência ética e histórica do Decálogo na formação do pensamento jurídico ocidental.
É cada vez mais evidente que, ao discutir a formação do Direito, não é possível ignorar suas raízes culturais e históricas. E, nesse ponto, a tradição judaico-cristã exerceu um papel muito maior do que se costuma admitir, especialmente por meio dos Dez Mandamentos. Ainda que vivamos em um Estado laico — e isso é essencial — negar a influência do Decálogo sobre a construção dos valores jurídicos seria ignorar a própria trajetória da civilização ocidental.
O texto bíblico, em sua versão clássica, registra normas como “Não matarás” (Êxodo 20:13, ARC), “Não furtarás” (Êxodo 20:15, ARC) ou “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20:16, ARC). São preceitos tão centrais que, mesmo milênios depois, seguem intocados no cerne dos códigos penais modernos. Seria coincidência? Ou estaríamos diante de uma das primeiras declarações normativas universais, que ajudaram a formar, direta ou indiretamente, o senso coletivo de justiça?
Autores como Norberto Bobbio afirmam que o Direito se desenvolve a partir da interação social e da necessidade de estabelecer limites para a convivência humana. Mas o que é essa “necessidade de limites” senão a mesma preocupação presente no Decálogo, que buscava garantir ordem, respeito e segurança? Bobbio reconhece que a evolução dos direitos é histórica, mas até a historicidade precisa de fundamentos éticos para se sustentar — e esses fundamentos, na cultura ocidental, passam decisivamente pelo texto mosaico.
Tomás de Aquino, por sua vez, ao formular a ideia de Lei Natural, já destacava que certos princípios são tão intrínsecos à moral humana que transcendem o legislador. Ele argumenta que normas como não matar, não mentir e não violar a propriedade alheia pertencem à própria racionalidade moral da pessoa humana. Em última instância, isso dialoga diretamente com o espírito dos Dez Mandamentos, que consolidam moralmente o que séculos depois se formalizaria juridicamente.
Miguel Reale, em sua Teoria Tridimensional do Direito, defende que o Direito nasce da interação entre fato, valor e norma. Ora, o Decálogo representa precisamente esse tripé: responde aos fatos sociais da época (a necessidade de ordem), consolida valores (vida, família, propriedade, verdade) e institui normas que, por sua clareza, atravessaram eras. Quando Reale explica que o Direito não existe sem valores, fica difícil negar que os valores expressos em Êxodo 20 serviram como matriz axiológica para diversas legislações posteriores.
Hans Kelsen, apesar de defensor da pureza do Direito e da separação estrita entre “ser” e “dever-ser”, reconhece que sistemas normativos se originam sempre de algum fundamento básico, um ponto de partida que dá estabilidade à ordem jurídica. Não seria exagero afirmar que, na civilização ocidental, o Decálogo desempenhou por muito tempo essa função simbólica de norma fundamental, mesmo que não positivada.
John Locke, por sua vez, ao refletir sobre direitos naturais como vida, liberdade e propriedade, ecoa claramente preceitos presentes no Decálogo — ainda que filtrados pela filosofia iluminista. Seu entendimento de que a propriedade é direito natural, por exemplo, pode ser conectado ao mandamento “Não furtarás”. E sua defesa da vida como direito inviolável se relaciona diretamente ao “Não matarás”. Assim, até mesmo pilares do constitucionalismo moderno carregam traços dessa antiga matriz normativa.
Na dimensão social, o mandamento “Honra a teu pai e a tua mãe” (Êxodo 20:12, ARC) demonstra uma valorização da estrutura familiar que dominou séculos de legislações ocidentais. Hoje, mesmo com novos modelos familiares reconhecidos, permanece o princípio fundamental do amparo familiar, alicerçado em normas de responsabilidade mútua. A essência permanece: a família continua sendo uma instituição jurídica protegida, ainda que redefinida.
Já o mandamento “Não cobiçarás…” (Êxodo 20:17, ARC) revela algo inusitado: a preocupação não apenas com a conduta, mas com a intenção. Embora o Direito moderno não penalize pensamentos, a doutrina penal reconhece que elementos subjetivos — como dolo e culpa — são indispensáveis para compreender a ação delituosa. Assim, a reflexão sobre a intenção, presente no Decálogo, encontrou abrigo doutrinário séculos depois.
Dizer que o Decálogo influenciou o Direito não significa alegar que códigos contemporâneos devam ser regidos por textos religiosos. Significa, sim, reconhecer que o Direito é fruto de um processo civilizatório que integra múltiplas fontes, e que uma delas — talvez uma das mais antigas e duradouras — é exatamente o conjunto normativo apresentado em Êxodo 20. O Direito não nasce em um vácuo moral, e qualquer tentativa de ignorar isso se torna incompleta.
Em síntese, os Dez Mandamentos foram mais do que instruções religiosas: foram um marco ético que moldou, consciente ou inconscientemente, a concepção de justiça que respiramos até hoje. Negar isso seria ignorar parte essencial da história do Direito. Reconhecer essa influência, ao contrário, permite compreender melhor por que certos valores permanecem fundamentais e por que ainda hoje lutamos por verdade, justiça, vida e liberdade.
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