O relógio dos privilégios: uma análise sobre racismo e gênero na enfermagem brasileira
A análise serve como um guia para compreendermos como o racismo e o sexismo se manifestam de forma material na jornada de trabalho
(Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil)
Um estudo recente no campo da Enfermagem introduz um conceito analítico poderoso: o “Relógio dos Privilégios”. Longe de ser apenas uma metáfora, essa ferramenta de visualização de dados lança uma luz precisa e inegável sobre a estrutura de desigualdade que opera dentro de uma das profissões mais essenciais do nosso país. A análise serve como um guia para compreendermos como o racismo e o sexismo se manifestam de forma material na jornada de trabalho. Para ganhar igual, mulheres negras trabalham quase um turno a mais que homens brancos na enfermagem.
Quantas horas a mais uma pessoa precisa trabalhar para ter o mesmo salário que outra? A pergunta, que parece matemática, é na verdade a ponta de um iceberg sociológico. Um estudo inovador, intitulado “Relógio dos Privilégios, Branquitude e Gênero”, não apenas quantifica essa disparidade na Enfermagem brasileira, mas a torna visível, palpável e urgentemente política. Longe dos indicadores complexos, a pesquisa utiliza o tempo como uma lupa para desnaturalizar as opressões que moldam os salários e as carreiras de uma categoria essencial para o país.
1. O que o Relógio dos Privilégios Revela?
A principal contribuição metodológica do artigo é o “Relógio dos Privilégios”. Através de uma análise de mais de 9,4 milhões de registros de empregos formais na Enfermagem entre 2013 e 2022, os pesquisadores demonstraram que a equivalência salarial não é uma questão de horas trabalhadas, mas de raça e gênero.
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O dado é chocante e direto: a cada 30 horas de trabalho de uma mulher negra — o grupo em maior desvantagem salarial — homens brancos precisariam trabalhar aproximadamente 6 horas e 42 minutos a menos para obter a mesma remuneração. O relógio, neste cenário, não marca o tempo cronológico, mas a aceleração da desigualdade. Enquanto o ponteiro do privilégio avança em seu ritmo normal, o da opressão precisa correr mais rápido, exigindo mais esforço e dedicação de quem já está na base da pirâmide salarial.
2. A Interseccionalidade da Desigualdade na Enfermagem
Para além dos números, a pesquisa oferece um diagnóstico sociológico robusto, enraizado em conceitos como interseccionalidade e branquitude. O estudo ressalta que a Enfermagem é uma profissão composta majoritariamente por mulheres (cerca de 85%) e, em sua maioria, por mulheres negras. A desvantagem salarial não pode ser analisada isoladamente como um problema de gênero ou de raça. Ela é, na verdade, a interseção dessas duas opressões.
A pesquisa nos lembra que o Brasil, em sua história, construiu a racialização e a dominação masculina como pilares de seu sistema social e econômico. A Enfermagem, em sua trajetória de profissionalização, ecoa essa hierarquia, com uma base teórica predominantemente branca e eurocentrada e uma presença reduzida de profissionais negros em cargos de liderança e na academia. A realidade do “Relógio dos Privilégios” é, portanto, a herança de uma violência histórica que subalternizou corpos e conhecimentos.
3. A Pesquisa como Ferramenta Política e a Urgência do Diálogo
A partir desse diagnóstico, os autores propõem uma agenda de pesquisa futura, visando analisar o impacto do novo piso salarial e os efeitos do racismo e da violência em diferentes contextos municipais. Essa abordagem reforça a ideia de que a pesquisa acadêmica, sem a parceria estratégica com entidades, mídias e o parlamento, perde grande parte de sua utilidade. O objetivo final é claro e direto: usar os dados produzidos para gerar pressão política, desnaturalizar o preconceito e produzir “microfraturas” na estrutura social.
O artigo da equipe não se propõe apenas a descrever um problema, mas a armar os trabalhadores com um conhecimento acessível e mobilizador. A intenção de “traduzir” a pesquisa para o público não acadêmico, através de uma ferramenta visual e intuitiva como o “Relógio”, é uma estratégia fundamental para transformar a denúncia em ação política.
A partir desse ponto, o estudo convoca a categoria a enfrentar o “silêncio da branquitude” e a questionar os mecanismos que naturalizam o privilégio. O objetivo, segundo os autores, não é apenas publicar um artigo, mas criar “microfraturas” no mundo. Ao expor a verdade por trás dos salários, a pesquisa se torna uma ferramenta potente para a luta por um novo piso salarial, por condições mais justas e, sobretudo, por uma profissão onde o tempo de trabalho e o mérito não sejam determinados pela cor da pele ou pelo gênero.
Referência:
Rafael, Ricardo de Mattos Russo; David, Helena Maria Scherlowski Leal; Poz, Mario Roberto Dal; Silva, Kênia Lara; Santos, Roberta Georgia Sousa dos; Espírito-Santo, Tiago Braga do; Peres, Ellen Marcia. Relógio dos Privilégios, Branquitude e Gênero: Inovando a Visualização das Disparidades Salariais da Enfermagem Brasileira. Disponível em: https://enfermfoco.org/article/relogio-dos-privilegios-branquitude-e-genero-inovando-a-visualizacao-das-disparidades-salariais-da-enfermagem-brasileira/. ISSN 2177–4285.
Sara York
Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.
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