Os arrastões evangélicos e o apelo ao cristofascismo

Seria quase apocalíptico imaginar que o “Cristo” que a maioria dos evangélicos adora hoje em dia, estivesse preocupado com os mais pobres e com os mais necessitados

Ricardo Nêggo Tom
Publicada em 28 de março de 2023 às 12:51
Os arrastões evangélicos e o apelo ao cristofascismo

(Foto: Reprodução/YouTube/Diz aí, Cristão!)

Há alguns dias fui apresentado a um vídeo, no qual um grupo de evangélicos entoava louvores dentro de um supermercado na zona oeste do Rio de Janeiro. Em meio a frutas e legumes, os participantes do ato manifestaram toda uma adoração a Jesus, a pretexto de um “avivamento” coletivo que, dentro do conceito religioso protestante, significa um despertar, uma conversão espiritual provocada pela presença de Deus em um determinado lugar. No caso do suposto avivamento ocorrido no supermercado carioca, ele bem que poderia ter sido uma forma de despertar social chamando a atenção para as milhões de pessoas que estão passando fome no país, em função dos altos preços dos produtos que compõem a cesta básica do brasileiro. Mas isso é utópico demais. Seria quase apocalíptico imaginar que o “Cristo” que a maioria dos evangélicos adora hoje em dia, estivesse preocupado com os mais pobres e com os mais necessitados.  

Antes, porém, é necessário entender a origem dessa ideia religiosa “avivamentista” e perceber em que ponto ela se intersecciona com o fascismo e com o projeto de poder evangélico que pretende tomar o Brasil de assalto, com direito a gesto de “arminha” na mão e muito ódio no coração. A ideia teológica de restauração espiritual sugerida pelo termo “avivamento” e que remete à manifestação do Espírito Santo na festa de Pentecostes, do grego pentēkostḗ, que significa “quinquagésimo”, festividade originada a partir de uma tradição hebraica chamada Shavuoth, cujo significado é “Semanas”, e era uma celebração feita pelos Judeu em agradecimento à Deus pela colheita realizada cinquenta dias após a Páscoa, ganhou força a partir do protestantismo norte-americano em 1730, quando historicamente eles reconheceram “o primeiro grande despertamento”, que teria se dado até 1740.

É importante considerar que, ao contrário do que acontecia na fase da igreja primitiva, onde tais avivamentos eram puramente motivados pelo fervor dos fiéis em receberem em si o “fogo do espírito santo” e se converterem a Cristo, como é possível observar na Bíblia, no livro de Atos – 2,41, durante a idade média tais manifestações eram induzidas em outras culturas, por meio da expansão do cristianismo aliada à colonização europeia. Um pouco mais adiante, tal “despertar espiritual coletivo” acontecia quando o domínio religioso se via ameaçado. Como no período iluminista, quando o movimento cultural propunha mudanças políticas, econômicas e sociais naquela época. O Iluminismo se opunha à religião e acreditava na disseminação do conhecimento e no estímulo ao pensamento crítico, como forma de enaltecer a razão em detrimento do pensamento religioso vigente.

O que estamos começando a presenciar no Brasil, longe de ser uma pentecostes tupiniquim, não passa de um movimento orquestrado por líderes de denominações evangélicas influentes na política, cujo intuito é manter acesa a chama do fogo do cristofascismo nos corações de seus fiéis eleitores. O comunismo continua a ser o “diabo” a ser destruído e o progressismo das esquerdas, que visa promover inclusão social e mais igualdade através de investimentos em educação e cultura, sugerindo uma desconstrução de valores conservadores que mantêm, sobretudo, os mais pobres como reféns de uma senzala ideológica construída pela igreja evangélica dentro das periferias brasileiras, demônios a serem repreendidos através de avivamentos coletivos em locais públicos. Outras manifestações supostamente espirituais e espontâneas, também foram registradas em dois shoppings do país. Um em Goiânia, outro em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

A ideologia cristofascista que pontua essas manifestações, se caracteriza por uma ideia totalitarista e imperialista representada por segmentos da chamada igreja cristã. Uma antítese da teologia da libertação defendida pelo Frei Leonardo Boff e pela teóloga alemã Dorothee Sölle, criadora do termo “cristofascismo” a partir da percepção de que o partido nazista e as igrejas cristãs na Alemanha, se relacionavam de modo a contribuir com o desenvolvimento do Terceiro Reich. Os protestantes alemães eram, em sua grande maioria, luteranos, e Hitler nunca escondeu a sua profunda admiração pelo reformista. Tanto, que no seu livro “Mein Kampf”, ele cita Martinho Lutero como uma das três principais figuras da Alemanha. Pouco se fala também, mas Lutero, que é considerado o pai do nacionalismo alemão e de sua igreja reformada, era tido como terrivelmente antilatino e antissemita. A identificação do nazismo com sua representatividade social era tanta, que a sua imagem foi utilizada por Hitler em sua campanha à presidência nas eleições de 1933, ao lado da suástica.  

Não é mera coincidência o fato de Jair Messias Bolsonaro ter surgido entre boa parte dos evangélicos brasileiros, como uma espécie de grande líder nacionalista e defensor dos valores morais e “cristãos” da nossa sociedade. O cristofascismo brasileiro remonta o alemão e o de outros países europeus, onde líderes cristãos sempre apoiaram supremacias, regimes totalitários e governos que instituíram políticas de ódio e intolerância contra minorias, se contrapondo ao Evangelho de Cristo que passa a ser adaptado aos interesses do fascismo político que detém o poder. Quem não se lembra de Bolsonaro ordenando que as minorias se rendessem ao seu poder ou desapareceriam sob ele? Uma forma de legitimar a violência contra seus opositores, a pretexto de uma legítima defesa da pátria e de seus valores que estariam em risco. Afinal, ele teria sido escolhido por Deus e pelo seu povo, para libertar a nação do comunismo, do socialismo e de outros bichos-papões imaginários criados para promover “avivamento” nos fiéis através da propagação do medo.

É bom não subestimarmos e nem naturalizarmos esses arrastões evangélicos que começam a pipocar em locais públicos e em diferentes pontos do país. Eles podem ser mais perigosos do que possamos imaginar e preceder algo terrivelmente nocivo à liberdade da população e à laicidade do Estado. O cristofascismo é diabólico, porque faz com que os seus seguidores, além de não respeitarem a existência de outros credos e culturas, lutem para que estes sejam instintos, em nome de um reinado religioso único e sob a égide da glória de um deus criado à imagem e semelhança da distopia que eles são instados a reproduzir como vontade divina. As ideologias políticas que não estiverem alinhadas com as normas desse “Cristo”, devem ser combatidas como inimigas da “palavra de Deus”, assim como os seus seguidores. Assim sendo, um governo autoritário, como foi o de Bolsonaro, se apropria de uma teologia fundamentalista para impor opressão àqueles que fogem aos padrões conservadores e tidos como tradicionais.

O apelo ao cristofascismo é grande. Mas a nossa resistência deve ser maior. Que Deus nos defenda dos seus seguidores!

Ricardo Nêggo Tom

Cantor, compositor, produtor e apresentador do programa Um Tom de resistência na TV 247

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