O ano de 2020 inicia com dois grandes avanços civilizatórios, por Elton Assis

O exercício de uma função pública pressupõe a abnegação e consciência de que o poder emanado do cargo ocupado encontra sérios limites na sua finalidade e também nos direitos e garantias estipulados pela Constituição em favor dos indivíduos

Ascom OAB/RO
Publicada em 08 de janeiro de 2020 às 15:25
O ano de 2020 inicia com dois grandes avanços civilizatórios, por Elton Assis

No raiar das luzes solares dos primeiros dias do ano de 2020, o ordenamento jurídico brasileiro é inovado e revigorado pelo início da vigência de ao menos duas importantes leis que foram debatidas e aprovadas pelo Congresso Nacional brasileiro: a Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019, com início de vigência a partir de 3 de janeiro; e a Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, com período de vacância de 30 dias, ou seja, com vigência a iniciar no final do mês de janeiro, ambas em 2020.

A primeira teve o condão de estabelecer o princípio republicano democrático de contenção de abuso de autoridade no exercício de algum dos poderes públicos previstos no desenho constitucional político vigente. Chamada de “nova lei de abuso de autoridade”, o diploma sofreu ferrenhas críticas de arautos que acusam-no de instigar temor por parte de agentes públicos de segurança e investigação policial, bem como em membros da magistratura e do Ministério Público, tendo por fundo a sempre controversa pauta do combate à impunidade e à corrupção.

No entanto, é inegável que a nova lei em questão vem atender uma demanda reprimida de atualização da legislação sobre o tema, já que a responsabilização de agentes públicos por abusos cometidos no exercício da função pública era disciplinada pela hoje revogada Lei n. 4.898, de 9 de dezembro de 1965, ou seja, da época em que vigia a ditadura militar no país.

O exercício de uma função pública pressupõe a abnegação e consciência de que o poder emanado do cargo ocupado encontra sérios limites na sua finalidade e também nos direitos e garantias estipulados pela Constituição em favor dos indivíduos. Não é ocioso rememorar que os ocupantes de cargos públicos são, também, cidadãos que podem vir a ser vitimados por abusos cometidos por outras autoridades. Essa lei os socorre igualmente, assim como socorre quem quer que seja, ocupante ou não de algum cargo na estrutura do poder público nacional.

Exercício de poder pressupõe também responsabilidade. Ao atribuir ao agente público uma miríade de poderes, há implícito e explícito o dever de autocontenção, prestação de contas, moderação e, em caso de abuso, responsabilização.

É urgente impor que o Estado brasileiro sirva a população e não se sirva da população. Não se pode aceitar que haja o exercício de poder em nome do Estado, poder este que não custa lembrar emana exclusivamente do povo, seu titular, sem que se imponha um regime de responsabilização capaz de coibir abusos e punir desvios.

Nessa esteira, a nova lei de abuso de autoridade também inovou ao atender antiga necessidade da advocacia e da cidadania brasileira, consistente na criminalização da violação das prerrogativas profissionais dos advogados. Exige-se de qualquer pessoa que seja ou deseje ser advogada(o) o agir com independência, autonomia e coragem, já que não pode pautar sua atuação em algum temor de represália ou de desagradar algum agente público ou privado. Daí que para isso existem as prerrogativas profissionais, de modo a possibilitar que a defesa dos direitos e interesses de seus constituintes - os cidadãos em geral - o membro da advocacia deve estar munido da devida proteção e dos direitos necessários para tanto.

Portanto, sem medo, cumpre afirmar que a lei em questão vem em boa hora e para somar ao plexo de direitos já existentes, no sentido de assegurar que sejam concretizados os preceitos constitucionais de civilidade e dignidade humana.

Quanto a segunda Lei, cuja ementa genérica indica se tratar de aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal, também há nela importante ganho civilizatório para o sistema de persecução penal vigente no país.

Erigiu-se à personagem do processo penal a figura do “Juiz das Garantias”, existente em outros ordenamento jurídicos e cuja criação já se debatia há certo tempo, quando no Senado iniciaram-se os debates do projeto de lei de um novo CPP (PLS 156/2009).

Sua missão precípua é nobre e relativamente simples: assegurar que os acusados em geral tenham efetivadas as garantias defensivas previstas na Constituição da República. Trocando em miúdos, é dizer: tornar concreta as previsões existentes na Carta Magna, não mera retórica desprovida de efetividade.

Essa nova implementação há de vir bem a calhar. O que revelou a imprensa acerca da relação, no mínimo, não recomendável, entre um magistrado e acusadores no curso da controvertida “Operação Lava-Jato” é sintoma da doença que o Juiz das Garantias pretende evitar, qual seja, a confusão de agir e atribuições entre aquele que acusa com aquele que deve proporcionar às pessoas um julgamento acima de qualquer coisa, justo. E a justeza de um julgamento é medida pela sua capacidade de efetivar o ordenamento jurídico ao caso concreto, o que significa não somente impor as agruras severas da lei penal, mas mais que isso, assegurar que os direitos relacionados à defesa do acusado sejam observados.

A violência praticada pelo particular contra quem quer que seja é grave e merece a devida reprimenda, com a aplicação de uma outra violência, esta institucionalizada e titularizada pelo Estado, de forma que haja a punição pelo ilícito, de modo a não gerar outra ilicitude. Daí que só pode haver aplicação de pena se houver previsão legal e após um julgamento desenrolado no interior de um devido processo legal.

É pressuposto de um julgamento justo a existência e atuação de um juiz imparcial. Claro, bem sabemos que o membro da magistratura é, antes de mais nada, ser humano, e não está infenso às condições que sua humanidade impõe, como a de qualquer outra pessoa. Portanto, não se deve ser ingênuo e pensar que se busca um juiz inanimado, desprovido de sentimentos inerentes à sua condição humana, assim como a formação de seu julgamento. No entanto, é dever do esquema processual penal garantir meios para blindar o julgador da formação de juízo de valor antecipado capaz de aniquilar qualquer chance de defesa.

A crítica dogmática denuncia há bastante tempo a incompatibilidade da adoção de medidas de investigação de ofício pelo julgador com o que se denomina sistema acusatório de persecução penal, típico de democracias modernas onde se cindiu aqueles que julgam daqueles que investigam, ainda que ambos sejam agentes públicos. Ou seja, quem investiga e acusa não julga e vice-versa.

No entanto, não basta ser uma separação aparente de funções. O descompasso entre o CPP, originário do Estado Novo varguista, de inspirações reconhecidamente fascisto-polonesas, e a Constituição Federal de 1988 se manifesta sensivelmente neste ponto. A despeito das ordens emanadas da Constituição, o Código de Processo Penal brasileiro insistiu em prover o julgador de mecanismos de investigação.

Sem o Juiz das Garantias, o que se vê rotineiramente é a concretização de antiga máxima jurídica, qual seja, o primado das hipóteses sobre os fatos. O juiz que investiga pode ser contaminado e ter mitigada a imparcialidade, pois é inafastável os efeitos que emanam da atividade investigativa. Quem investiga, no fundo, já sabe o que investiga e busca validar sua premissa. Admitir que julgador investigue é admitir que não temos sistema acusatório algum, mas, sim, o arcaico sistema inquisitório, de onde vieram inúmeros casos de injustiça incorporados em erros judiciários graves.

O Juiz das Garantias, portanto, deverá atuar na fase pré-processual até o recebimento da denúncia, a partir de quando atuará o Juiz que efetivamente julgará o mérito da acusação.  

Cabe ao das Garantias, portanto, permitir que o de Julgamento mantenha-se imparcial, de modo que haja paridade de armas entre acusação e defesa. Ele é condição para efetividade da dialética processual, onde acusação e defesa exporão cada um suas versões sobre os fatos em discussão e, principalmente, as provas que lhe subsidiam. Sem que haja combinação oculta entre julgador e acusação ou entre julgador e defesa. A equidistância deve ser a pedra de toque, assegurando-se o que todos e cada um deseja sempre que se vê acusado do cometimento de algum ato: um julgamento justo.

Assim, não há como negar que o ano 2020 estabelece horizontes positivos na efetivação dos direitos fundamentais, passos certos para a concretude da nossa Constituição Federal.

Elton Assis
Presidente da OAB/RO

Winz

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