O paradoxo eleitoral da mulher negra evangélica
Se a identidade de mulher negra, trabalhadora, mãe, cuidadora, for ativada por políticas que toquem diretamente sua vida, votos podem se voltar a progressistas
Culto evangélico (Foto: Lucas Rocha/Sputnik)
Uma cena breve, mas poderosa, do documentário Apocalipse nos Trópicos, de Petra Costa, revela um dos dilemas mais profundos da política brasileira contemporânea. Aos 1h19min do filme, disponível na Netflix, vemos uma senhora negra, evangélica, conversando com sua filha. A mãe declara que votará em Jair Bolsonaro por influência da religião, mesmo reconhecendo que Lula tem propostas boas. A filha, jovem demais para votar, diz que preferiria Lula, mas se incomoda com “a proposta dele para os banheiros”. Essa troca rápida encapsula o conflito central das eleições de 2022 — e, possivelmente, das de 2026.
O grupo demográfico que mais votou em Lula foi o de mulheres negras. Já o grupo que mais apoiou Bolsonaro foi o dos evangélicos. E os evangélicos, em sua maioria, são mulheres negras. Esse aparente paradoxo revela uma disputa profunda entre identidades que coexistem, mas que podem ser mobilizadas de formas distintas no momento do voto.
Muito se debate sobre o chamado “voto identitário”. Há quem o critique, como se fosse uma distorção da racionalidade política. Mas essa crítica ignora um fato básico: todos os votos são, em alguma medida, identitários. Votamos como moradores de uma cidade, como trabalhadores de um setor, como pessoas que compartilham valores, histórias e esperanças. O próprio Partido dos Trabalhadores carrega essa mobilização identitária em seu nome. Nos anos 1980, seu slogan era claro: “Trabalhador vota em trabalhador.”
No caso das mulheres negras evangélicas, o dilema é: qual identidade será mobilizada? Se a identidade religiosa for dominante — especialmente quando associada a valores morais percebidos como ameaçados — o voto tende ao bolsonarismo. Mas se a identidade de mulher negra, trabalhadora, mãe, cuidadora, for ativada por políticas que toquem diretamente sua vida, o voto pode se voltar ao campo progressista.
O governo atual precisa entender esse dilema e evitar a armadilha de tentar disputar com os líderes evangélicos suas pautas morais. Em vez disso, deve construir uma narrativa de esperança que dialogue diretamente com essas mulheres. Políticas de saúde, segurança, educação e, especialmente, a nova Política Nacional de Cuidados - regulamentada pelo presidente Lula em julho, são instrumentos poderosos para isso. Mas ainda falta ao governo uma articulação discursiva que torne visível esse futuro em construção.
A recente melhora na popularidade do governo, impulsionada por fatores externos como os ataques de Trump e Eduardo Bolsonaro, aumenta as chances de reeleição de Lula. No entanto, a campanha não pode se limitar à união contra os retrocessos bolsonaristas. É preciso oferecer uma visão de futuro que convoque todos os que se sentiram traídos pelo bolsonarismo a reconstruir o país com base em valores de justiça, cuidado e dignidade.
Pedro Abramovay
Advogado, mestre em direito constitucional pela UnB e doutor em ciência política pelo IESP-UERJ, trabalhou em diversos postos no governo Lula de 2003 a 2010, incluindo o de secretário nacional de Justiça. Atualmente é vice-presidente de programas da Open Society Foundations.
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Comentários
1 - "Narrativa de esperança".....que "narrativa de esperança" se pode esperar de um PT que defende direitos humanos apenas para os bandidos??? que "narrativa de esperança" se pode esperar de um PT em que todo aquele que questiona ..que critica são carimbados de EXTREMA DIREITA....quer dizer, o PT não tem diálogo, não aceita o CONTRADITÓRIO....TODOS TEM QUE SE SUBMETER A SEUS DOGMAS...2 - como aceitar os "dogmas da esquerda" como a banalização do aborto (HOJE EXISTEM MIL MANEIRAS DE PREVENÇÃO); 3 - para não alongar: SAÚDE????? EDUCAÇÃO????? SEGURANÇA(quando a politica do PT é TORNAR A VIDA DO CIDADÃO A MAIS INSEGURA POSSIVEL, MAS PRIVILEGIANDO E AMPLIANDO OS DIREITOS DOS BANDIDOS)....
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